Estava resfriado e havia prometido a mim mesmo uma noite de sono digna e longa. Furei o meu acordo, abri os olhos às 06h16 da manhã e pulei da cama feito um menino. Estranhamente, me sentia ótimo, então segui para os rituais da higiene pessoal.
Feito isto, fui até a sacada para abrir as cortinas, o sol já se exibia orgulhoso para todos, feito alguém recém-promovido. Mas, diferente de outras vezes, os raios solares que invadiam os espaços entre o mosaico de prédios do Brooklin criavam um efeito nunca visto. Ao fechar levemente os olhos, vi um grande teclado de piano, formado pela luz do sol e pela sombra dos prédios. Tantas vezes estive na mesma situação, mas, de forma esquisita, presenciava essa estruturação visual pela primeira vez.
Feito um Sherlock Holmes, comecei a investigar em qual local da casa estaria o carregador de celular. Andando de um lado para o outro, continuei na minha coleção de coisas estranhas do dia. Eu me sentia flutuar. Estava de chinelo de dedos, mas o ato de andar estava tão leve, que parecia estar volitando como se estivesse com uma pantufa supermacia do Garfield.
Ufa! Achei o pedaço de fio que estava procurando, mas também encontrei algo estarrecedor em mim: percebi que naquele instante eu não tinha dores, não tinha problemas, não tinha preocupações e nem mesmo pressa. Não entendi o que estava acontecendo, onde estava aquele prontuário de SUS que vive dentro de mim? Me senti tão leve e feliz que pensei estar vivendo um dia especial de vida, considerando as mais de seis décadas vividas, digo, vivenciadas.
Fui para a cozinha “passar o café”. No escritório ele é feito na máquina, e em casa tenho o privilégio de enfiar o nariz no coador e sentir todas as lembranças que o cheiro do café matinal me traz. Retornei à minha indignação para entender o que estava acontecendo, onde tudo dentro e fora de mim parecia perfeito. Estava em algum estado de consciência alterado.
Emergiram então três graves teorias do que estava em andamento. A primeira: aquele estado de torpor, plenitude e ausência de problemas talvez fosse um início de AVC (acidente vascular cerebral). Articulei frases e palavras, mexi com dedos da mão e pés e fui para o espelho da sala ver se algo estava torto no meu rosto. Tudo estava em perfeitas condições.
Então, migrei para a segunda teoria e aventei a possibilidade de ser meu primeiro dia de Alzheimer, o que me faria esquecer problemas e preocupações. Busquei na memória lembranças de curto e longo prazo e todas vinham com riqueza de detalhes, não havia esquecido nada. Descartei a segunda alternativa.
Assombrosamente, comecei a considerar a terceira possibilidade. Aquelas condições de sentimentos perfeitos eram minha preparação para deixar esta vida; o anjo da morte me aguardava em algum cômodo do apartamento. Talvez fosse isso: você sente que está tudo bem e perfeito, em seguida vem o desfalecimento fatal e você cai duro. Embora eu já tenha algumas malas prontas, eu ainda não estava completamente pronto para fazer esta viagem com destino ao sepulcro.
Colado a essas reflexões insanas, o café ficou pronto e o primeiro gole me trouxe para uma realidade estarrecedora. Lembrei-me de que havia tomado dois comprimidos de antigripal antes de dormir. Flutuei para o quarto e, de posse do blister de alumínio amassado, percebi que a composição era uma verdadeira “Festa Rave”. Embora as preocupações e os problemas fossem legítimos, o medicamento havia me colocado em outro limiar de percepção, que me fazia dar de ombros para eles.
O efeito terapêutico, já nas próximas horas, desapareceu, mas a reflexão interna sobre o “porquê” nos sentimos desconfortáveis quando está tudo bem permaneceu durante o dia. Desconfiamos quando simplesmente nos sentimos felizes, leves ou sem preocupações. Talvez uma alternativa seja mudar o limiar de entendimento ou de percepção sobre o que vivemos. A vida não precisa ser uma “Festa Rave”, mas também não precisamos torná-la um “ENEM” para ser vivenciada todos os dias.
Ninguém merece resfriado, mas todo mundo merece um dia de antigripal.
Informações do Autor
Fernando Cesar Cardoso
Profissional de Treinamento & Desenvolvimento, com uma longa vivência em Educação Corporativa, atuou como executivo de Recursos Humanos e possui uma experiência adquirida em décadas de trabalho em empresas nacionais e multinacionais como: Petróleo Ipiranga, Sintofarma, Merrell Lepetit, Hoechst Marion Roussel, Aventis Pharma e Grupo Sanofi. Seu embasamento conceitual tem sido consolidado através de atualizações profissionais em cursos realizados em importantes instituições globais como: MIT Massachusetts Institute of Technology (Cambridge – EUA), The Oxford Group (Paris – França), ICM Inter Cultural Management (Nova York – EUA), CrowneFinch (Paris – França), Hay Group (Bridgewater – EUA) e HCI Education (Paris – França). Atuou como professor de Pós-Graduação e MBA em “Gestão do Fator Humano”, “Planejamento de Recursos Humanos”, “Processos de Gestão de Pessoas”, “Recrutamento & Seleção”, “Remuneração Estratégica”, “Clima e Cultura Corporativa” e “Selling Skills”. Autor dos livros: Glossário de Competências Organizacionais, Coaching Executivo e PDCA Gestão Estratégica. Adicionalmente completa seu perfil profissional como Gerente Executivo da Heutagus Educação Corporativa e SBTD – Sociedade Brasileira de Treinamento e Desenvolvimento.
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Key Words
• Autodesenvolvimento
• Desenvolvimento Humano
• Expansão da Consciência
• Recursos Humanos
• Sensibilidade Humana