Quando um estudo clínico é finalizado e a análise dos dados está completa, é produzido um relatório do estudo. As informações desse relatório, que é confidencial, são utilizadas como parte de dossiês para submissão a autoridades regulatórias por ocasião do pedido de registro do medicamento estudado. Essas informações também serão utilizadas para a preparação de artigos a serem publicados por revistas médicas, quando então os resultados tornam-se públicos.
Houve um tempo em que alguns estudos, cujos resultados não eram tão bons como esperado, acabavam “esquecidos” e nunca chegavam a ser submetidos para publicação. Isso mudou quando a maioria das revistas médicas de prestígio passaram a exigir, que para que um estudo clínico pudesse ser publicado, era necessário que antes de seu início fosse feito um registro em um site sob responsabilidade da U.S. National Library of Medicine, que é parte do National Institutes of Health (www.clinicaltrials.gov). Assim, todos os estudos que planejam uma publicação futura têm que estar registrados a priori nesse site público e não têm como serem ocultados.
Neste artigo vamos falar sobre alguns pontos importantes quando lemos uma publicação de estudo clínico.
Todo artigo tem um título, que deverá de forma clara indicar o que será abordado, a seguir uma lista dos autores e suas filiações e também palavras-chave, que facilitam a busca.
Inicia com um sumário, que resume os métodos e resultados. Como o tamanho do sumário é limitado, ele pode não conter detalhes críticos. A conclusão no sumário nem sempre é a mesma conclusão que chegaríamos após analisarmos os detalhes críticos do estudo.
A introdução, é uma breve revisão do que já existe sobre o tema e explicação do racional e relevância do estudo. Quem está familiarizado com o tema do artigo pode ir direto para o que importa. É um estudo com dados originais? Ou um artigo de revisão ou metanálise? O estudo tinha uma hipótese a ser testada ou é somente descritivo? Se o estudo teve uma pergunta a ser respondida, qual era essa a pergunta?
A seguir vem uma parte extremamente importante que sempre deve ser lida com atenção, os métodos. Nesta seção devem estar descritos os critérios de elegibilidade, intervenções, objetivos, desfechos, tamanho da amostra, randomização, métodos estatísticos da análise. Pode ser um item complexo para ler, mas muito importante, já que uma metodologia fraca pode invalidar o restante. Devemos buscar entender alguns pontos críticos. Qual o desenho do estudo? É um estudo intervencional ou observacional? Qual o tipo de intervenção? Um medicamento? Os critérios de elegibilidade fazem sentido para aquele tipo de tratamento? O objetivo e o desfecho primário foram bem escolhidos? O desfecho primário se refere a um dado centrado no paciente ou a resultado de laboratório? O estudo foi realizado muito tempo antes de ter sido publicado? Os tratamentos e procedimentos usados ainda fazem parte da prática atual? A população em estudo e procedimentos são similares a de outros países? O número de pacientes parece suficiente? Como foi estipulado?
A seção seguinte é a de resultados. É onde se informa o número de participantes, incluindo triados, randomizados e abandonos com os motivos, dados basais, resultados e estimativas, eventos adversos. Em geral são apresentados tabelas e gráficos. Os resultados têm que ser consistentes com os métodos descritos. Não pode haver descrição de resultados que não faziam parte do desenho do estudo e não pode deixar de ter a descrição dos resultados que o estudo planejava avaliar. Devemos ter em mente algumas perguntas. O número de pacientes está correto, ou alguns “desapareceram”? Se há comparação entre grupos, existe uma tabela com os dados comparativos? Os dados basais dos grupos parecem homogêneos? Existem fatores de confusão? Foram levados em conta? Existem discrepâncias entre as tabelas e os dados citados no texto? Qual foi a adesão dos pacientes ao tratamento? Os eventos adversos e dados de segurança estão devidamente descritos?
Tabelas e gráficos permitem apresentar dados complexos e relações entre dados de forma mais fácil de ver e interpretar. Permitem sumarizar e destacar achados importantes de forma visual. Existem, no entanto, algumas dificuldades, como por exemplo, tabelas muito extensas com inclusão de dados não essenciais. Às vezes, ao contrário, as tabelas são muito simples e poderiam ter essas informações diretamente no texto. Pode haver inconsistência ou falta de explicação no uso de símbolos ou abreviaturas assim como má escolha de elementos visuais ou formatos. Gráficos que necessitam textos longos para explicar o conteúdo possivelmente não foram bem escolhidos e algumas vezes ocorre má escolha de escalas.
Ao ler tabelas e gráficos é importante verificar se os dados são consistentes com o texto, com as outras tabelas e com as legendas.
Cabe aqui um parêntese para lembrar algumas etapas percorridas pelos pacientes e que facilitam o entendimento da apresentação dos resultados.
Após assinatura do termo de consentimento o paciente passa a fazer parte do estudo. Após aplicação dos critérios de elegibilidade o paciente passa a ser elegível e caso não seja elegível, é considerado uma falha de triagem (screen failure). Se elegível, o paciente está apto para ser randomizado e iniciar o tratamento. Linha de base ou basal (baseline) se refere ao momento em que o paciente está apto a iniciar o tratamento. O termo “paciente incluído” pode se referir ao paciente que apenas assinou o termo de consentimento ou ao paciente que foi de fato randomizado.
Pacientes que abandonaram o tratamento continuam fazendo parte do estudo e seguidos quanto aos dados de segurança, a menos, é claro, se não concordarem e decidirem deixar o estudo.
Existem dois tipos de população de pacientes do ponto de vista da análise dos dados. A primeira é a População com Intenção-de-Tratamento (Intention-to-Treat ou ITT). É definida como os pacientes que receberam pelo menos uma dose do tratamento e têm pelo menos um dado basal e pelo menos um dado pós-basal da variável primária de eficácia.
Como essa população pode não ter todas as avaliações de eficácia, no momento da análise a última avaliação de eficácia disponível será repetida (Last Observation Carried Forward ou LOCF). É uma análise mais conservadora, já que no momento da última avaliação de eficácia pode não ter havido tempo para o tratamento fazer todo o efeito.
A segunda é a População por Protocolo (Per Protocol). É definida como os pacientes que completaram o tratamento e as avaliações. Os pacientes têm que ter aderido aos procedimentos do protocolo, isto é, não podem ter tido nenhuma violação importante do protocolo.
Uma vez apresentados os resultados, passa-se para a discussão, que contém uma interpretação dos resultados, a possibilidade de generalização e as limitações. A discussão tem que avaliar a robustez do estudo e colocá-lo no contexto de outras publicações médicas.
Alguns pontos devem receber nossa atenção. As fraquezas e limitações do estudo estão descritas adequadamente? Os autores discutem os possíveis fatores de viés nos resultados? Os autores consideram que a análise levou em conta devidamente os fatores de confusão? Os autores discutem a possível generalização dos resultados?
Finalmente, chegamos às conclusões. Essa seção deveria poder responder às perguntas apresentadas na introdução. E devemos ser críticos com relação a alguns pontos em particular. As conclusões são compatíveis com os resultados apresentados? Algum aspecto que poderia afetar as conclusões foi omitido?
O artigo pode terminar com agradecimentos, declaração de conflito de interesses, e sempre uma lista das referências bibliográficas.
Além dos artigos que apresentam os resultados de um determinado estudo clínico, temos também as metanálises e revisões sistemáticas, que quando bem feitas, são consideradas o padrão-ouro de evidência científica.
Um artigo de revisão resume o entendimento atual de um tema médico. Não apresenta dados novos, mas sim uma revisão de literatura com um resumo de artigos já publicados e algumas vezes inclui a opinião dos autores.
Já uma revisão sistemática é uma busca exaustiva na literatura médica sobre uma determinada questão, que de forma sistemática identifica, seleciona, avalia e resume todas as pesquisas relevantes relacionadas à questão. É geralmente publicada por um grupo de especialistas depois de revisar as informações de todos os artigos disponíveis, podendo mesmo incluir informações não publicadas, desde que de fonte segura.
Metanálise é um tipo de revisão sistemática que utiliza técnicas estatísticas para combinar os dados dos estudos individuais. As conclusões de uma metanálise são mais fortes que as de um estudo devido ao maior número de pacientes e maior diversidade. Mas, se os estudos não forem cuidadosamente selecionados, e forem muito heterogêneos, os resultados podem levar a conclusões equivocadas.
Para concluir, vamos falar um pouco sobre os dados de segurança.
Não existe um padrão ouro para segurança assim como existe para eficácia. O tamanho da amostra é planejado para detectar eficácia e não o risco de eventos adversos. Pode também haver inconsistência na forma de reportar eventos adversos entre os diversos investigadores.
Eventos graves e raros podem não aparecer durante o período do estudo naquela amostra. Mas é possível definir a priori certos eventos adversos de interesse para monitorar mais detalhadamente. No entanto, eventos desconhecidos não têm como serem antecipados.
Além disso, a generalização é limitada, já que critérios de elegibilidade rígidos excluem pacientes com maior risco e os estudos podem não refletir a vida real.
O momento da ocorrência do evento adverso com relação à administração do medicamento pode variar desde uma reação de hipersensibilidade imediata a aumento no risco de câncer muitos anos depois.
É preciso, portanto, ter cautela para interpretar os dados de segurança de um estudo clínico, levando em conta o número de pacientes e suas características e a duração do tratamento e do seguimento. A farmacovigilância bem executada após a comercialização dos medicamentos é que vai de fato permitir acompanhar sua segurança de uso na vida real.
Informações do Autor
Dra. Eliana Maria de Benedictis
Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com Residência Médica em Ginecologia e Obstetrícia pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, tendo atuado nos últimos 26 anos na indústria farmacêutica e em organizações de pesquisa clínica (CRO). Atuou nas empresas: Wyeth, Roche, Parexel e Janssen.
Entre as funções que desempenhou, destaca-se pesquisa clínica, monitoria médica, farmacovigilância, medical affairs, gerenciamento de crises, suporte regulatório e gerenciamento de equipes de alta performance.
Tem especialização em Administração Hospitalar e Sistemas de Saúde pela Fundação Getúlio Vargas e Mestrado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas.
Atua como consultora para Farmacovigilância, Pesquisa Clínica, Medical Affairs e treinamento médico de Força de Vendas e MSLs. Implementação de área e processos de Farmacovigilância na indústria farmacêutica e CRO.
eliana.benedictis@gmail.com
Direitos Autorais
O conteúdo deste artigo é de inteira propriedade do “Autor”, e seus respectivos direitos autorais são protegidos pela Lei 9.610 de 19.02.1998. Qualquer uso, divulgação, cópia ou disseminação de todo ou parte deste material sem a citação da fonte, são expressamente proibidos.
Responsabilidades Autorais
Adicionalmente além dos direitos da posse do conteúdo, também incide sobre o “Autor” os deveres e responsabilidades sobre sua criação de conteúdo. Este artigo é de inteira responsabilidade do “Autor” e pode não refletir necessariamente a linha educacional, conceitual, ideológica ou programática da SBTD – Sociedade Brasileira de Treinamento e Desenvolvimento.
Key Words
– Estudo Científico
– Estudo Clínico
– Farmacovigilância
– Indústria Farmacêutica
– Pesquisa e Desenvolvimento (R&D)