Até pouco tempo atrás, as fases de um estudo clínico eram desconhecidas da maioria do público que não atua na área de pesquisa. Hoje muitos já sabem que, de modo geral, a Fase 1 recruta voluntários saudáveis e avalia farmacocinética e segurança. A Fase 2 recruta voluntários com a doença e faz as primeiras avaliações de eficácia, e finalmente a Fase 3 avalia a eficácia e segurança em um número grande de voluntários e por um período mais longo. O que poucos sabem é que, segundo estimativas da agência FDA, apenas 70% dos medicamentos que completam a Fase 1 passam para a Fase 2 e apenas 33% dos que completarem a Fase 2 passarão para a Fase 3.
Neste artigo vamos falar das peculiaridades de estudos com vacinas. Por vacinas estamos nos referindo a vacinas profiláticas, pois existem vacinas terapêuticas, que utilizam mecanismos de vacinas, mas seus estudos se assemelham mais a estudos com medicamentos em geral.
Apenas como introdução, vamos lembrar de forma simplificada os princípios básicos da imunidade. A primeira linha de defesa é conhecida como imunidade inata. Nela estão incluídas as barreiras físicas e químicas, como por exemplo a pele, pH gástrico, mucosas. Além disso, atuam como barreiras alguns líquidos do corpo (sangue, líquor, por exemplo) e alguns tipos de células. É uma resposta quase imediata à agressão externa e não depende de ter havido estímulo prévio. Não é específica para um dado agente agressor, e nem possui memória. Além da rapidez, é crítica para a resposta seguinte, conhecida como imunidade adquirida (ou adaptativa).
A imunidade adquirida tem por base o reconhecimento por parte dos nossos mecanismos de defesa de um antígeno, que é algo estranho não pertencente ao organismo. A partir do reconhecimento do antígeno externo (mecanismo que às vezes é falho, daí a existência de doenças autoimunes) as células de defesa (linfócitos B) produzem os chamados anticorpos cuja função é neutralizar os antígenos invasores. A imunidade adquirida que atua através de anticorpos é chamada de imunidade humoral.
Existe também a imunidade adquirida do tipo celular, que se dá através da ação de diversos tipos de linfócitos T, em um sistema sofisticado e complexo. Ambas, imunidade humoral e celular possuem memória. Daí que no caso de muitas infecções, só ficamos doentes na primeira vez, depois os anticorpos e linfócitos dão conta dos invasores. Infelizmente, algumas vezes, embora exista a memória, os níveis de anticorpos ou quantidade de linfócitos contra aquele invasor não se mantenham suficientes para lidar com a reinfecção. Em outros casos, o invasor esconde-se dentro das células, de forma que se torna invisível para os mecanismos de defesa.
A imunidade adquirida pode ser obtida espontaneamente, através da própria infecção e através de anticorpos maternos, ou pode ser obtida artificialmente, de forma passiva, através de soros com imunoglobulinas, ou ativa, através de vacinas.
Vacinas
De modo geral, as vacinas desencadeiam a resposta da imunidade inata e ambas as respostas da imunidade adquirida, humoral e celular. Seu princípio básico é apresentar o antígeno aos mecanismos de defesa de uma maneira que não cause a doença. Esse antígeno pode estar em um vírus atenuado, em um vírus inativado, em parte de uma bactéria, em toxinas, em outro vírus inócuo (vetor) que carrega os antígenos do vírus alvo, e através de outras tecnologias com base em RNA ou DNA que faz com que o próprio organismo produza o antígeno.
Além dos antígenos propriamente, as vacinas possuem outros componentes, tais como adjuvantes (aumentam a resposta imune), preservativos (previnem contaminações por fungos ou bactérias) e aditivos (mantêm a estabilidade).
Estudos clínicos com vacinas
Vacinas passam pelas mesmas fases de estudo que os medicamentos para serem aprovadas: Fase 1, 2 e 3. Um ponto importante, é que em todas as fases os voluntários no caso de estudos com vacinas são saudáveis com relação à doença que a vacina se propõe a prevenir.
Fase 1: Nesta fase, ao contrário dos estudos com medicamentos, não faz sentido se falar em farmacocinética. Não existe um fármaco administrado para o qual se quer medir o nível no sangue. A Fase 1 basicamente avalia segurança e reatogenicidade, que é a reação de curtíssimo prazo à administração da vacina, como por exemplo, inchaço e dor no local de aplicação, mal estar, febre ou reações imediatas do tipo alérgicas e anafilaxia. Avalia também dados preliminares da resposta imune e o número de doses necessárias.
Fase 2: Aqui são avaliados até centenas de voluntários com relação à imunogenicidade (humoral e celular), ou seja, capacidade de provocar resposta imune em quem recebe a vacina. É determinada também a dose em termos de quantidade de antígeno que deve estar presente.
Importante também citar que na Fase 2, os voluntários do estudo têm que ter baixo risco para contrair a infecção. Caso contrário, vai ser difícil avaliar se a resposta imune foi devida à vacina ou à infecção.
A imunogenicidade humoral será medida através dos títulos de anticorpos. É avaliada também a capacidade que esses anticorpos possuem em neutralizar o vírus.
Já a imunogenicidade celular é mais complexa de ser avaliada e isso não é feito na prática clínica. É necessário coletar linfócitos T que são isolados a partir das amostras de sangue dos voluntários. Esses linfócitos são difíceis de coletar e poucos laboratórios têm capacitação para isolar linfócitos a partir de amostras de sangue.
Vamos explicar um pouco mais sobre esse processo. Ao centrifugar a amostra, os elementos do sangue ficam separados em camadas. A camada inferior no tubo de ensaio corresponde a hemácias, eosinófilos e neutrófilos. Na camada seguinte fica o polímero sintético que é usado no processo de separação. A terceira camada, extremamente fina, é onde ficam as células mononucleares do sangue periférico (Peripheral Blood Mononuclear Cell – PBMC) onde estão os linfócitos T. A camada mais superficial, que corresponde a mais de 50% do centrifugado, é a que contém plasma e plaquetas, além de hormônios e eletrólitos, e é usada para grande parte dos exames laboratoriais de rotina.
Os linfócitos T devem ser coletados vivos e ativos, para que depois possa ser testada a sua atividade contra o vírus. O ELISpot e a citometria de fluxo são os métodos mais comumente usados para medir a atividade dos linfócitos T. Essa avaliação não é feita nos laboratórios, mas sim em um laboratório central qualificado pelo patrocinador do estudo. Assim, após isolados, os linfócitos T precisam ser mantidos de forma adequada para que permaneçam vivos e ativos até chegarem a esse laboratório central.
Fase 3: Para entender melhor essa fase temos que lembrar que a imunogenicidade não necessariamente se correlaciona com a proteção contra a doença. É claro que se não for observada resposta imune na Fase 2, nem se dará continuidade para a Fase 3.
Nesta fase, são recrutados milhares de voluntários e será avaliada a eficácia na prevenção da infecção, ou da doença causada pela infecção ou de suas complicações, dependendo do desfecho escolhido. A imunogenicidade é novamente avaliada, mas não necessariamente da forma completa em todos os participantes como na Fase 2, podendo ser apenas em um subgrupo.
O seguimento é de longo prazo (1 a 2 anos) e se avalia, além da reatogenicidade, também a segurança. Avalia-se também a consistência entre diversos lotes, já que vacinas são produtos biológicos.
O grupo controle pode ser placebo ou alguma vacina já comercializada para outra doença que não a do estudo. Quando se utiliza outra vacina como controle fica mais difícil para médicos e participantes saberem quem recebe vacina ou controle, já que ambas são vacinas e possivelmente poderão causar algum tipo de reação imediata, como inchaço e dor no local da aplicação, febre baixa, mal estar.
Aqui, ao contrário da Fase 2, os voluntários têm que ter alto risco para contrair a infecção porque o que se quer medir é o número de casos de infecção (ou da doença, ou complicações) comparativamente ao grupo controle. Caso os participantes tenham baixo risco de contrair a infecção, o estudo poderá se prolongar indefinidamente.
Outro ponto no qual estudos com vacinas diferem dos estudos com medicamentos é a forma como se avalia a eficácia. No caso de vacinas, por ocasião do desenvolvimento do protocolo, será feito um cálculo de quantos casos de infecção (ou da doença, ou complicações) deverão ocorrer para que possam ser feitas as análises dos resultados. Com o estudo em andamento, após atingido esse número de casos, é calculada a proporção de quantos casos ocorreram no grupo vacinado e no grupo controle e assim se mede a eficácia. Caso não seja observada significância estatística, pode-se esperar atingir um maior número de casos, pré-determinado no protocolo, e refeita a análise. É comum ser estabelecido pelo protocolo um número de casos para uma análise interina ou preliminar e um número maior para uma análise final.
O grande número de participantes é necessário para que esse número de casos ocorra dentro de um tempo razoável. Além disso, serve para aumentar o poder estatístico das avaliações de segurança.
Fase 4: Embora menos comum de que com medicamentos, é possível fazer um estudo de Fase 4, ou seja, depois que a vacina já esteja aprovada pela autoridade regulatória. Esse tipo de estudo pode ser solicitado por autoridade regulatória ou por iniciativa do fabricante para avaliar a segurança a longo prazo. Mas em geral, os dados de segurança a longo prazo, da mesma forma que com os medicamentos em geral, virão do acompanhamento de farmacovigilância do uso na vida real.
Informações do Autor
Dra. Eliana Maria de Benedictis
Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com Residência Médica em Ginecologia e Obstetrícia pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, tendo atuado nos últimos 26 anos na indústria farmacêutica e em organizações de pesquisa clínica (CRO). Atuou nas empresas: Wyeth, Roche, Parexel e Janssen.
Entre as funções que desempenhou, destaca-se pesquisa clínica, monitoria médica, farmacovigilância, medical affairs, gerenciamento de crises, suporte regulatório e gerenciamento de equipes de alta performance.
Tem especialização em Administração Hospitalar e Sistemas de Saúde pela Fundação Getúlio Vargas e Mestrado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas.
Atua como consultora para Farmacovigilância, Pesquisa Clínica, Medical Affairs e treinamento médico de Força de Vendas e MSLs. Implementação de área e processos de Farmacovigilância na indústria farmacêutica e CRO.
eliana.benedictis@gmail.com
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Key Words
– Estudo Científico
– Estudo Clínico
– Farmacovigilância
– Indústria Farmacêutica
– Pesquisa e Desenvolvimento (R&D)